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ROUBARAM NOSSO PÔR DO SOL, MÃE!

Era para ser mais uma tarde de primavera, a estação do ano que mais encantava Joana. Como de costume, naquele dia, Joana acordou cedinho. Gostava de contemplar o nascer do sol, as cores da rica flora das serras que circulam a cidade onde nasceu e vive com sua família. Também encontrava beleza nas hortaliças cultivadas por sua mãe no quintal de casa, nas flores e roseiras do jardim não projetado. Joana herdou de sua mãe o gosto por jardins, não podia ver um tipo de planta diferente, que logo desejava uma mudinha. Se conseguia uma, já sabia que plantaria onde sua mãe achasse melhor. Joana gostava do jeito multifloral do jardim, achava mais criativo.
Ainda naquele dia, além de contemplar o que era de hábito, Joana carregava uma alegria diferente no peito, uma realização mais que individual: havia reencontrado amigos e amigas e conhecido pessoas de diversos lugares durante uma semana de festa na Serra da Barriga. As músicas, ritmos, trajes, danças, ritos religiosos, vivências de grupos de capoeira etc. herdadas de sua ancestralidade negra haviam feito de seus olhos duas estrelas de grande brilho.
De tanto contentamento, não conseguia parar quieta. Fez logo o café e molhou a massa de cuscuz, deixou a massa descansando um pouco e foi à padaria. Lá encontrou Tiana, amiga de estudo e de vida, sempre estavam juntas.
— Oi, Tiana! O que achou das atividades artísticas na Serra?
— Nossa, amiga... Adorei! Joana, você sabia que a Serra da Barriga passou a ser Parque Memorial Quilombo dos Palmares?
—  Faz tempo, Tiana! Não sabia? O Parque foi implantado no ano de 2007, mas veja, antes disso a Serra da Barriga já tinha sido tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o Iphan, em 1985. Foi uma grande conquista, porque a República dos Palmares foi reconhecida como o maior, mais duradouro e organizado quilombo já implantado nas Américas. Leia tudo o que você encontrar sobre o Parque no site da Fundação Cultural Palmares, é muito interessante.
— Amiga, quanto orgulho fazer parte dessa história! Minha avó sempre conta relatos de nossos ancestrais. Aprendo mais com ela do que na escola, sabia?
— Tiana, preciso ir. Vai subir a Serra mais tarde? Vamos!!!
— Vamos sim, nos encontraremos no local marcado para a saída do ônibus.
Joana não dava conta da ansiedade. A manhã tinha sido longa, ela não havia perdido nenhuma das atividades culturais do projeto Pôr do Sol, realizadas aos domingos na Serra da Barriga, em União dos Palmares, Alagoas. Para ela, era um reencontro com a cultura africana e, portanto, consigo mesma, uma remanescente de quilombo.
— Mãe! Hoje tem pôr do sol na Serra. Está animada?
— Vou não, filha... Não estou com coragem. Já fui uma vez. É a mesma coisa, não é?
— Claro que não, mãe! Cada nascer e pôr do sol são únicos, por isso vou todos os domingos. Não lembra da música de Lulu Santos? e cantarola: “Nada do que foi será/ de novo do jeito que já foi um dia/ Tudo passa, tudo sempre passará/ [...]// Tudo que se vê não é/ igual ao que a gente viu há um segundo/ Tudo muda o tempo todo no mundo/ [...]”.
Joana fez a mãe sorrir e exclamar:
— Filha, se você tivesse que viver da música, passaria fome. É melhor você ser uma boa arquiteta, como deseja.
Sorriem juntas.
— Não importa, mãe. Fazer você sorrir já foi muito bom. Vamos pra Serra?
— Dessa vez não. Quem sabe no próximo domingo...
—  Certo, vou cuidar! Não quero perder o ônibus, tem horário marcado.
—  Vai com quem? perguntou a mãe.
—  Com Tiana e o povo todo. Sei me cuidar, mãe!
—  Cuidado, Joana, o mundo não tá fácil!
Rumo à Serra!! O elevado calor, intensificado pela aglomeração de 48 pessoas de 5 a 84 anos de idade no ônibus com destino à Serra da Barriga, não reduziu a alegria contagiante que embriagava a todos. Além da amiga Tiana, Joana se encontrou com outras pessoas jovens da cidade.
O dia estava escaldante, prometia um espetacular pôr do sol. Uma grande bola avermelhada viria se escondendo, valseando por trás das serras e deixaria os seres contempladores suspensos de suas vidas cotidianas, marcadas pela negação de quase todos os direitos. O espetáculo lhes faria sorrir atentos à esplendorosa beleza a ser contemplada. As pessoas que ali estivessem se sentiriam contentadas e privilegiadas, pois, embora digam que o nascer e o pôr do sol são para todos os seres do planeta, aquele pôr do sol a ser contemplado do alto da Serra da Barriga, naquela tarde de novembro, seria privilégio de poucos.
A baixa velocidade do ônibus acelerava o coração de Joana. A hora do sol se pôr se aproximava, não era possível haver espera, outras serras o aguardavam.
Faltava pouco, quase nada, para chegar ao alto da Serra-mãe...
—  O que houve?
Sua voz trêmula emergiu dos quatro cantos:
—  Mais uma vez vou assistir o sangue de meus filhos ser derramado ribanceira abaixo.
Os risos foram transformados em gritos e silêncios. Contam que um grito ecoou por toda a serra:
—  ROUBARAM NOSSO PÔR DO SOL, MÃE!
Acreditam que foi o último grito de Joana. Ela não sabia que a tragédia já estava anunciada.
O ônibus despencou. Joana, Tiana e mais tantas outras pessoas não contemplaram o pôr do sol no dia 24 de novembro de 2024. A Serra-mãe chorou a morte de seus filhos. Outras serras cumpriram o ritual, esconderam o sol que, segundo contam, reduziu seu esplendor naquele dia.
Gorete Amorim
Enviado por Gorete Amorim em 12/03/2025


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